Capítulo 4
Os ventos da rebelião
Alexios era um experiente misthios. Dificilmente não cumpria seus contratos e antes aos 25 anos já tinha uma sólida reputação. Para Kyra, isso era mais do que suficiente para voltar a ter fé de que as coisas começariam a dar certo depois da chegada dele. Enquanto os três caminhavam em direção ao esconderijo após a batalha na praia, Alexios percebia que a dinâmica entre ela e Thaletas indicava que ali havia algo além do ódio aos atenienses. Eles pareciam muito próximos, íntimos o suficiente para brigarem até mesmo na vitória. Sem compreender porque estavam tão irritados, Alexios seguiu o caminho em silêncio, e se perguntava se aqueles dois estavam realmente do mesmo lado. Começou a se sentir inquieto pois sabia que Esparta não tinha nenhuma base em Míconos, então o que diabos alguém da patente daquele general estava fazendo em pleno território da Liga de Delos?
Já no esconderijo, os três começaram a discutir qual seria o próximo passo. A reunião se passava no centro do lugar dentro de uma caverna, e no local haviam vários suprimentos de guerra espalhados. No entorno da mesa que ficava no meio, os três discutiam o próximo passo. Thaletas queria confrontar Podarkis de frente, enquanto Kyra queria mais tempo para bolar um plano. Alexios estava ficando impaciente, pois sabia que a rebelião não poderia aguentar muito mais tempo resistindo, mesmo escondidos nas sombras. Era preciso agir, e Alexios acreditava que Thaletas estava certo em querer agir ostensivamente.
- Nós viemos aqui para lutar, e não para nos esconder! - gritou o general, batendo sua mão direita em cima da mesa.
- Acalme-se, amigo. Nós vamos lutar ainda. - Alexios tentou apaziguar, percebendo que Kyra estava visivelmente ofendida.
- Estou cansado. Vou voltar para o acampamento, que é aonde meus homens estão. Meu lugar é ao lado deles. Venha falar comigo quando você decidir que quer vencer essa guerra. - Thaletas respondeu olhando para Kyra, e em seguida virou-se para Alexios antes de dar as costas e caminhar para fora do esconderijo.
- Eu estarei planejando uma estratégia de verdade enquanto vocês dois comparam suas espadas. - disse Kyra, retirando-se para seus aposentos, abandonando um Alexios confuso e sozinho. Alexios sentiu que este havia sido um claro sinal de que alinhar-se com Thaletas provavelmente tinha sido uma má ideia.
Já estava anoitecendo, e os cavalos haviam sido recolhidos para serem tratados em segurança antes de serem disponibilizados para Kyra e seus aliados pela manhã. Thaletas, que já estava irritado, não estava gostando da ideia de ter que caminhar de volta para o acampamento. Os espartanos não possuíam cavalos próprios naquela ilha e, no geral, estavam dependentes dos rebeldes para todo tipo de recurso. O general caminhava rápido e impaciente, e Alexios teve que apertar o passo para alcançá-lo. Após o ocorrido no esconderijo, acreditava ser melhor passar a noite na companhia dos espartanos.
- Thaletas. Thaletas, espere! - ele gritou enquanto aproximava do general, que parou e olhou para trás.
- Alexios. Eu sinto muito por você ter presenciado aquilo. – Thaletas parou para esperar por Alexios, e eles passaram a andar lado a lado em um ritmo moderado. - Eu não sei mais o que fazer. Estamos fadados ao fracasso nesta missão. Kyra não possui guerreiros, seus aliados são desajustados, marginais. Conseguem ganhar uma briga ou outra contra um punhado de atenienses pegos de surpresa, mas jamais serão capazes de ultrapassar as defesas de Podarkis. - Ele desabafava enquanto tentava manter constante o ritmo de sua respiração, que estava acelerada devido ao nervosismo. Sentia-se contido, encurralado, e já não tinha mais certeza se os deuses continuariam a livrá-lo da morte.
- Então por que você não arruma um navio neutro e tira seus homens dessa ilha? Não me parece que a Liga do Peloponeso está se esforçando muito em conquistar este lugar afinal.
Thaletas riu, e para Alexios foi uma risada de autopiedade.
- Eu vim por Esparta, mas permaneci por Kyra. – o general respondeu com desânimo. Se não estivesse anoitecendo, Alexios poderia jurar que os olhos do general lacrimejavam.
Ao fundo, o grasnar de Ikaros indicava que ele estava para pousar. Suas asas planaram até que ele alcançou os dois homens que caminhavam na estrada, pousando no antebraço de Alexios.
- Você realmente é o Portador da Águia. Isso é incrível. – Thaletas disse, encantado com a ave.
- O nome dele é Ikaros. Não sei exatamente como ele se apegou a mim, mas aonde quer que eu vá ele me acompanha, me protege.
- Ele te acompanha o tempo todo? Vê tudo o que você faz? - Thaletas riu debochando.
- Sim! Ikaros observa tudo o que eu faço. Eu não ligo de ser observado mesmo, então está tudo certo. - Alexios riu também, e o duplo-sentido de sua resposta descontraiu a conversa. - Thaletas... Eu irei fazer o possível para ajudá-los a vencer essa rebelião.
Alexios era um mercenário, mas ele não conseguia deixar de se importar com as pessoas que encontrava em suas viagens. Ele carregava muitas coisas em seu coração que trazia de contratos passados, de situações que teriam sido apenas negócios, não fosse a empatia que sentia com quem cruzasse seu caminho. Aquela não seria a primeira vez em que ele aceitava um trabalho porque no contrato dizia-se "pago bem", para no final sair com o coração mais pesado do que antes. E, se tratando de espartanos, as coisas ficavam ainda mais delicadas para ele por causa de seu passado mal resolvido. Mesmo entendendo que era melhor manter-se na esfera dos negócios, Alexios desejava confortar o general de coração partido.
- Tenho certeza que você ainda poderá fazer Kyra feliz. - Ele deu um tapinha nas costas de Thaletas, mas o general recebeu com incômodo.
- Desculpe-me, é que me acertaram em cheio nas costas. Está bem dolorido.
- Acho que posso ajudá-lo com isso quando chegarmos no acampamento.
Meses antes, o mercenário conhecera em Delfos um médico especialista em ervas, e ganhou dele uma variedade delas, em agradecimento por sua ajuda no vilarejo. Ele lembrou-se daqueles momentos com nostalgia, e contou a Thaletas como o médico aliviou não apenas suas dores físicas, mas também emocionais. Descreveu Lykaon sem poupar elogios, e lamentava-se por ter que abandoná-lo. De vez em quando, gostava de observar o horizonte na direção da Fócida, e tentava imaginar o que o médico estaria fazendo. Thaletas ouvia atentamente, e se sentia privilegiado por Alexios compartilhar isso com ele. Ele sabia que o amor e o instinto protetivo que vinha com ele davam força e coragem às pessoas. Ansiava sentir-se da mesma forma, e antes que pudesse se dar conta, a saudade de seus momentos com Kyra aos poucos ia se dissipando. Não pretendia desistir da rebelião e levaria seu espírito guerreiro até as últimas consequências, mas já estava certo de que, saindo vivo dessa situação, zarparia para fora de Míconos em busca de um novo propósito.
Quando finalmente chegaram ao acampamento, Thaletas informou a Alexios que ele poderia usar alguma tenda desocupada por um de seus homens que morreu em combate. Mesmo fazendo o possível para manter a compostura, o general se referia às suas perdas com pesar em sua voz.
- Mas antes, - respondeu Alexios, - deixe-me ajudá-lo com suas costas.
Eles caminharam em direção à tenda principal do acampamento, e do lado de dentro havia alguns panos, almofadas, uma pequena superfície de madeira e armas brancas empilhadas em um canto. Em cima da pequena superfície havia algumas ferramentas e utensílios. Thaletas guardou suas armas, removeu suas sandálias e braçadeiras e desatou seu peitoral de couro e aço, murmurando palavras de alívio. Alexios ajudou-o a sair da armadura pois seus movimentos estavam claramente limitados por conta de seu ombro machucado.
- Sente-se nas almofadas. - disse Alexios. - Fique de costas pra mim. - Começou então a preparar a receita que havia aprendido com Lykaon. De uma pequena bolsa, retirou mandrágoras ressecadas e picadas, folhas, e um pequeno frasco de cerâmica.
- Você pretende retornar para Delfos um dia, se estabelecer ao lado de Lykaon? - Thaletas puxou assunto.
- Não. Tenho muitos assuntos pendentes para resolver. Estou em busca da minha família.
No frasco havia uma porção de azeite de oliva, e usando alguns dos utensílios que encontrou na superfície de madeira, Alexios amassou o óleo com as folhas.
- Sua família não está em Esparta?
Com o calor de uma tocha acesa e água, Alexios preparou um tipo bem rústico de ensopado com a mandrágora, e acrescentou algumas variedades de folhas ressecadas para amenizar o sabor forte.
- Este daqui você bebe, - ele respondeu, - E o óleo eu vou colocar diretamente na sua pele. Minha família não está mais em Esparta. Meu pater e meu irmão adotivo, talvez. Mas no momento estou em busca de minha mater e de minha irmã. - Continuou, enquanto se acomodava atrás do general.
Thaletas bebeu o remédio a contragosto, pois o sabor e o cheiro eram fortes.
- Ugh... isso é horrível!
Alexios riu enquanto aplicava o óleo sobre a pele de Thaletas, não conseguindo deixar de notar a textura de antigas cicatrizes, marcas que cortavam sua cor bronzeada. Por longos minutos, os dois permaneceram ali, conversando a respeito da jornada de Alexios pelos territórios das cidades-estados, e Thaletas aos poucos sentia o ardor de suas dores amenizando. Sem entrar em detalhes a respeito de quem eram as pessoas de sua família, Alexios confinou ao general as pistas do paradeiro de sua mãe, indicando aonde ele iria uma vez que a rebelião acabasse. Não era exatamente próximo do general, mas sentia que não tinha problema dizer essas coisas a ele. Mesmo sonolento, Thaletas não conseguia desprender sua atenção, e imaginou-se narrando seus feitos militares para o misthios.
- Agora você precisa descansar. Tente não fazer coisas pesadas nos próximos dias, e seu ombro ficará perfeito antes que perceba.
- Obrigado, Alexios.
Naquela noite, Thaletas adormeceu em agradecimento aos deuses por sentir que seu novo amigo, mesmo sem perceber, trazia para ele uma certa paz de espírito.
Alexios caminhou pelo acampamento cumprimentando alguns soldados. O desânimo daqueles homens era visível, e a afeição que tinham uns com os outros era o que os mantinha unidos. O símbolo da terra natal espalhado pelo acampamento era um constante lembrete do que era realmente importante. Alexios então se acomodou em uma das tendas vazias, despindo-se de suas peças pesadas e de suas armas. Deitou-se num punhado de panos amassados e adormeceu enquanto encarava um estandarte vermelho do lado de fora.
Os dias subsequentes mostraram para Alexios que esta seria uma longa rebelião. Thaletas moveu seu acampamento para outro lugar com a ajuda dos rebeldes e do próprio Alexios, esperando assim evitar novos ataques inesperados. O novo acampamento contava com mais recursos, pois o mercenário era também um experiente caçador, e passou algum tempo ocupado conseguindo tudo o que podia para ajudar no sustento de seus aliados.
Certa manhã, Alexios decidiu que visitaria Delos disfarçado, equipado somente com a lâmina herdada de seu avô e, claro, na companhia de Ikaros. Começou caminhando pelo comércio principal em torno do porto, e acabou gastando algumas dracmas em suprimentos especiais como mel, vinho e frutas frescas. Aproveitou para observar os cidadãos daquela região, e notou que, na presença de guardas atenienses que patrulhavam as ruas, as pessoas costumavam fazer silêncio. Após um agradável passeio e já carregando um cesto com suas compras, decidiu que era hora de retornar para Míconos, quando escutou alguns sussurros que pareciam citar os atenienses. Com seus ouvidos afiados, escutou os passantes dizendo que parte da frota zarpou para fora das ilhas com o objetivo de auxiliar a capital na Ática, contra os avanços do Peloponeso. Decidiu adentrar no porto para tentar averiguar a informação, e sem querer viu embarcar em um navio um polemarco ateniense, e em poucos minutos ele zarpou para o noroeste com parte de seus homens. Isso significava que Podarkis estava subestimando Kyra ao enfraquecer suas defesas, e que o momento de os rebeldes agirem estava realmente muito próximo. Polemarcos eram mestres de batalha e essenciais para a ofensiva de guerras e defesas de fortes, e se este guerreiro estava deixando Míconos, é porque Podarkis acreditava estar seguro.
Retornando para o acampamento, Alexios começou a pensar se Thaletas ficaria contente em dividir frutas e mel com ele. Estava confiante após a nova descoberta e ansiava por relatar as notícias ao general. Então lembrou-se de que havia sido contratado por Kyra e que a rebelião era dela, e riu de si mesmo ao constatar que estava se afeiçoando ao general.
“Talvez seja melhor não me meter entre esses dois.” - Ele pensou. Ikaros grasnou lá do céu, como se concordasse com os pensamentos de seu dono.
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